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TEXTOS CRÍTICOS

Berlim, por Afonso Nilson de Souza

 

Em uma época em que os fascistas saem do armário através das redes sociais, e em que políticos fragorosamente homofóbicos, machistas, racistas e xenofóbicos alcançam o apoio de uma considerável parcela da população incapaz de perceber a própria ignorância e violência, espetáculos como Berlim: dois corpos à procura, da Karma Cia de Teatro, de Itajaí, são cada vez mais necessários.

 

Em cena, Leandro Cardoso e Mauro Filho dançam e se debatem em coreografias que abordam o universo dos enlaces, do amor e da sedução homoafetiva, mas também o preconceito e a impassibilidade diante da violência de gênero, que aflige diariamente milhares de gays,travestis, transexuais e mulheres no país.

 

Não há no espetáculo nenhum discurso panfletário, não há narrativas de morticínios e casos isolados. Há apenas dois corpos que dançam, que buscam através de seus movimentos e contorções não um sentido, mas a força de uma pulsão corporal que quer explodir em referências do universo que abordam.

 

Mas o que é Berlim? Uma cidade alemã onde possivelmente o preconceito seja menor, ou menos tolerado? Um ideal de civilidade onde as pessoas possam sonhar com igualdade, afeto e justiça? Ou Berlim é apenas um bar, onde iguais se encontram para buscar amor, sexo e esperança? Onde é Berlim, que em neon oscila em multicores durante todo o espetáculo?

 

Dois corpos a dançar angustiadamente, à exaustão, sem discursos, sem placas, sem diálogos. O que querem? O que são? Para quem dançam? Em um momento se beijam. Não um beijo comedido, simpático, comercial. Um beijo de encontros noturnos, de saliva, de lábios, mordidas gemidos. Um beijo que se fosse entre um homem e uma mulher não mereceria menção, mas que pode provocar escândalos em determinadas plateias, e em outras, a condenação direta ao inferno. Talvez seja exatamente para essas plateias que Berlim persiste em dançar.

 

Afonso Nilson Gestor de cultura, crítico e dramaturgo. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres (E-Galáxia / Chiado Editora) coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.

Berlim, por Marcos Vasques

 

“Os tempos ditatoriais estão em voga de novo”. “Estamos retrocedendo ao passado”. “Fascismo avançando novamente”. Essas são algumas das frases mais ouvidas por agora, não apenas no Brasil, mas praticamente em todo o Ocidente. Nessas frases, e em outras do mesmo tom, parece haver uma perda de liberdade para o obscuro, para a censura e a violência daqueles que odeiam qualquer diversidade. No entanto, há grupos em que essa provável liberdade perdida nunca existiu, esse “retorno do fascismo” não faz sentido porque o fascismo sempre esteve em suas vidas, nunca foi uma ausência. Entre esses grupos estão as travestis, os homossexuais e transexuais.

 

Eles-elas sempre existiram em qualquer sociedade, em algumas até são cultuadas. Mas na nossa sociedade, civilizada, desenvolvida, capitalista, tecnológica esse grupo é jogado à margem, aos esgotos, às madrugadas, à pista. Sempre houve pouca luz sobre eles-elas: são violentadas, abandonados, largadas, mortos. Não as vemos, porque desumanizados: nós, os cegos violentos; eles-elas as vítimas. Uma minoria consegue escapar do destino, consegue a inserção na “naturalidade” da vida cotidiana e diurna, a maioria ainda permanece à mercê de qualquer sorte trágica. A luta é grande, contínua, prenhe de derrotas, mas também grávida de vitórias. Berlim: dois corpos à procura, apresentado durante o 5º Festival Nacional de Teatro Toni Cunha, no Teatro do SESC, pode ser considerada uma dessas vitórias.

 

Os atores Leandro Cardoso e Mauro Filho usam de suas experiências, de suas vivências para universalizar o esgotamento de uma sociedade que insiste em não se olhar no espelho, o esfacelamento de um mundo que prefere como residência a hipocrisia, a violência em suas mais variadas cores. Sim, o ponto de partida de Berlim é o espancamento diário sofrido por pessoas que têm uma orientação sexual que desafia a normatividade, mas o espetáculo se amplia de tal maneira, que fala e denuncia toda espécie de achatamento do humano.

 

E o que é Berlim? É a defesa do direito ao corpo para fora da pancadaria, para fora da possibilidade do soco. A defesa do corpo para dentro da possibilidade da vivência individual e coletiva. É a não aceitação da força, da castração, do apagamento e da invisibilidade imposta pela normatividade embrutecida. É luta para não se perder o direito à corporeidade. É investigação da vida e suas potencialidades. É a nossa crueldade em fratura exposta. Berlim fala sobre ter muitas direções, muitos lugares e moradas. A luta se estabelece pelo hoje, pelo agora e, também, pelo amanhã. Apresenta a dança de nossas crueldades e danações.

 

E o que se quer em Berlim? Arte, vida livre, direito à liberdade e o desejo de um mundo mais equivalente. No entanto, o espetáculo não se ancora no discurso, na palavra para gritar. Com mergulho aprofundado e consistente na performatividade, na dança e no teatro é na coreografia dos corpos que se centra a força expressiva do trabalho. A luta corpórea que toca os embrutecimentos, mas também o que temos de mais terno.

 

Nada se apresenta em excesso. A música, a iluminação, a palavra, os gestos são dosados por uma dramaturgia que leva em consideração o peso de cada elemento para o todo. Se, como dissemos no início, uma onda conservadora se avoluma sobre nós é preciso entender que em outras épocas essa mesma onda nos assolava em silêncio. E mais: exigia que as vozes contrárias aos seus extermínios não contestasse. A arte como um todo sofre ataques faz tempo, muito tempo. O teatro, que é uma arte social por excelência, tem dado respostas à vigilância dominante.

 

Marco Vasques (SC) é poeta, contista e crítico de teatro. Mestre em teatro pelo programa de pós-graduação da Udesc, com pesquisa em Flávio de Carvalho. É doutorando em teatro pelo mesmo programa. Autor dos seguintes livros: “Elegias Urbanas” (poemas, Bem-te-vi, 2005); “Flauta sem Boca” (poemas, Letras Contemporâneas, 2010); “Anatomia da Pedra & Tsunamis” (poemas, Redoma, 2014); ‘Harmonias do Inferno” (contos, Letradágua, 2010), dentre outros. É editor do Caixa de Pont[o] - jornal brasileiro de teatro e do jornal Ô Catarina!. Integra a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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